Quando falamos em perfume, é comum pensarmos em “cheiros bons” e “cheiros ruins”. Porém, essa dicotomia é uma construção cultural — e não uma verdade universal. O que para uma sociedade pode ser um aroma de luxo, para outra pode ser considerado vulgar ou até repulsivo. A perfumaria, portanto, não é apenas arte, ciência e química: ela é também cultura, memória e linguagem invisível.

Cheiro como linguagem invisível

Jean-Claude Ellena, em Perfume: The Alchemy of Scent (2009), afirma que o perfume funciona como uma língua sem palavras. Ele comunica intenções, estados emocionais e até status social, sem que seja preciso pronunciar nada. Mas, assim como as línguas mudam de uma região para outra, os códigos olfativos também se transformam segundo o tempo, o espaço e a mentalidade coletiva.

Por exemplo, enquanto na Europa o patchouli foi associado aos movimentos contraculturais dos anos 1960 e 70 — carregando o estigma de “cheiro de hippie” — no Oriente ele era considerado um aroma nobre, ligado à espiritualidade e à prosperidade.

A herança da antiguidade

Annick Le Guérer, em seu clássico Le Parfum: Des origines à nos jours (1988), mostra que os gregos e romanos atribuíam aos perfumes funções religiosas e sociais. Os aromas resinosos, como o olíbano e a mirra, eram associados ao contato com o divino, usados em ritos de purificação e oferenda. Já aromas animais e sensuais, como o almíscar, eram conectados ao desejo e à vitalidade da vida.

Essa dualidade entre perfume sagrado e perfume erótico atravessou séculos, marcando até hoje a forma como percebemos famílias olfativas diferentes.

Idade Média e o medo do cheiro

Na Idade Média europeia, a percepção olfativa foi moldada por concepções médicas e religiosas. Le Guérer explica que os miasmas — vapores considerados nocivos e responsáveis por doenças — influenciaram profundamente o modo como o Ocidente começou a diferenciar “odores limpos” e “odores perigosos”. Aromas fortes, picantes ou animais eram vistos com desconfiança, mas paradoxalmente usados pelas elites como símbolo de poder.

A psicologia dos cheiros

Paul Jellinek, em The Psychological Basis of Perfumery (1951), mostra que o impacto de um aroma é filtrado não apenas pela biologia, mas também pela cultura e pela memória individual. Um mesmo perfume pode ser reconfortante para uns e desagradável para outros, dependendo da carga simbólica que carrega.

A lavanda, por exemplo, para muitos ocidentais remete à limpeza e calma, por sua associação com sabonetes, roupas de cama e rituais de relaxamento. Já para outros pode ser um cheiro de velhice, ligado a memórias de avós e objetos antigos.

Existe cheiro bom ou ruim?

Quando entendemos que o olfato é moldado pela história e pela cultura, percebemos que não existem “cheiros bons” ou “cheiros ruins” em essência. O que existe são narrativas construídas ao longo do tempo, que domesticaram nosso olfato e nos ensinaram o que devemos apreciar ou rejeitar.

A perfumaria natural e artística, nesse sentido, pode ser vista como uma forma de resgatar a liberdade sensorial, reconectando-nos com cheiros autênticos, complexos e muitas vezes fora do padrão da indústria. Ela nos convida a redescobrir o olfato como um campo aberto de experiências — um território cultural, psicológico e espiritual.

A percepção cultural dos cheiros nos mostra que o perfume é mais do que estética ou química: é memória, história, psicologia e poder simbólico. Ao explorar essas camadas, a perfumaria natural abre espaço para uma relação mais profunda com os aromas, devolvendo ao olfato sua dimensão mágica, ancestral e transformadora.

 

Fontes de pesquisa para essa postagem:

Paul Jellinek -The Psychological Basis of Perfumery

Annick Le Guérer - Le Parfum: Des origines à nos jours

Jean-Claude Ellena - Perfume: The Alchemy of Scent